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O amor natimorto

23.Mar.13

O amor nasceu morto no inverno de anteontem.

Estava morto, mas nasceu.

Uma contradição impossível, mas o amor não é possível.

O amor é mais sangue do que a veia aguenta.

E quando nasce morto, é a dor do membro arrancado que ainda dói. Que ainda coça. Mas que é impossível coçar.

A um amor natimorto não se permite dano. Não definha, não passa, não afoga na dose de uísque. O amor natimorto é perfeito.

Somos nós, hospedeiros do amor, que sofremos a morte antecipada do amor, mas não devíamos.

O amor natimorto não se enfeia.

É bonito, sempre, e só.

23.Ago.11

foi um momento de pensar hipocrisias. envergonhada, uso do sutil silêncio das palavras escritas – bradá-las alto e claro pudesse ser assim encontro e perda. são dias de fragilidade: ninguém mais tem o café de alma calma, ninguém vai ao trabalho com andares leves, um segundo a mais na chuva e é possível perceber o cheiro do medo. uma pessoa frágil é o campo de estudos dos comportamentos que nunca se entendem; como se só pudéssemos reconhecer uma pessoa quando ela estiver irreconhecível para si mesma.

(agosto de 2009)

23.Ago.11

é tempo de lamber mais dedos do que se tem nas mãos! ouvi o grito de pés atados enquanto mundos orbitavam por debaixo, nenhuma cor. passava, até, os dedos pelos lábios, mas não podia lambê-los por pudor, por dor, pela pura libertinagem explícita que seria lambê-los assim, às escuras e longe de todos. mas deixemos os dedos, duros e frios, voltemos aos mundos, nenhum suficiente. correm alucinados por debaixo dos pés de pernas que não identifico, mas também não recuso, e que visto como se fossem minhas e desando a caminhar sobre febres terçãs e macadâmias, inexistentes, frutos de nada além de minhas orações. previsivelmente doces e de sombras turvas vão ali seis ou sete mil mundos, seis ou sete mil órbitas burras e cegas, e recusamos uma a uma portando sorrisos distantes que não reconhecemos. um dia nascerá algum outro mundo que possamos comer, eu rezo, esmagando com força um punhadinho de flores rasteiras por não aguentar a leveza com que seguem aquela maldita existência ordenada e serena. e quando o dia chegar (o dia do outro mundo) haverá flores rasteiras por toda a superfície. e vamos comer uma por uma, elas e esse cheiro de cru que tanto ansiamos na inocência de desejar por qualquer coisa que não seja sonho. mas não hoje. hoje, não. existe pelo menos uma hora de podre na duração de cada dia.

19.Jan.11

“Como sempre, às mulheres, de um lado lhes chove, do outro lhes faz vento”

Saramago, em Caim

experimento

16.Dez.10

não se canse, meu amor. não se canse.

há pernas pelas ruas, e não te é permitido cansar.

as unhas estão limpas, teu corpo é saudável

a conta bancária segue caminhos tranquilos

e o coração bate.

não se canse.

a noite vem de braços dados a um vento frio

porém não úmido

e o insuportável e doloroso calor ainda não chegou.

as casas continuam presas aos quintais

e os carros passam, sonoros.

não há sangue pelo chão,

nem apelos de criança perdida,

nem velhos a reclamar.

não há desespero no futuro

e o presente se impõe

como todos os presentes, imóvel e inquieto.

a escada ainda sobe, levando a lugar algum.

não te é permitido cansar.

os olhos da coruja recordam tempos semelhantes

as peles coloridas são ainda coloridas

nada de água invadindo terra

nada de ar invadindo água

e o peito, em fogo, repousa calado

e sem chamas.

não se canse, não te cansarás

e a herética melancolia de estar vivo

dormirá tranquilamente no renascer dos dias

desempoeirando a direção.

matisse

26.Nov.10

das noites, o mais difícil era piscar. alexandria queimou quase inteira, e eu contando pintas. haverá um local exato a serem depostas todas as mortes? se houver, gostaria que a minha fosse assim, perto de pedras, mas também não muito longe das águas ou das crianças. a parede do fim do caminho das tentativas é sempre tão cheia de sangue. mas quem foi mesmo que chegou até lá? drummond querido drummond disse que o mundo não vale o mundo. aqui atrás de mim há um Bosco grande, monstruoso, dividido em sete lâminas. em uma delas vou entrar só por rejeitar o meio. aquelas pessoas pequenininhas, de roupas feias, quase se pode sentir o cheiro fétido daqueles marrons, aquelas mães atadas a um sentimento de compaixão, aquelas faces retorcidas e o fogo, labareda. onde o pousa o mistério do beija flor, se suas asas batem tão rápido? a beleza é algo imóvel. como um cílio torto ou um joelho malformado. a reconstrução de uma vida começa com um banho. ensinar os olhos a habitar o horizonte.

 

26.Nov.10

no verão nascem dias em que o destino é tão sólido quanto um azulejo, e o mundo em silêncio grita uma agonia em flauta doce. era um desses dias (só se fazem cinco ao ano) e brincávamos com dedinhos úmidos sobre as poças das lágrimas que ainda estavam por derramar. suspendíamos no ar uma coisa corporal que podiam ser mãos ou dedos e logo nos desfazíamos na imensa dúvida do agora, um ponteiro de relógio traçado a ouro. a ameaça mais fatal que a própria essência.

 

quando os olhos piscam, que imagem aparece para você? se me pergunto antes de piscar, vejo um campo de margaridas doces e translúcidas, serventes de um sol que se põe atrasado para o resto da vida. “podiam cuspir em minha cara”, pensamos, eu e Artaud.

21.Nov.10

“A poesia a gente tem que vivê-la dia a dia, todos os dias, todos os minutos. Você tem que ser poesia, tem que trabalhar aquilo em você. Você tem que levar uma vida em estado de poesia, mesmo se preocupando em pagar contas como todo mundo. Mas ao mesmo tempo sempre em estado de poesia, nunca deixando pra depois. A poesia não dá pra deixar pra depois.”

 

Alice Ruiz

caso do vestido

20.Nov.10

de Drummond

 

 

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele…

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio.  Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei… disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há… nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

18.Out.10

de repente já não piso nos teus sonhos. entre nossos corpos havia uma mordaça cortante, ou qualquer coisa de ferro quente que nos amortecia do denso torpor dos silêncios. brincávamos com os pés suspensos e erguíamos com os olhos o peso do que não poderíamos falar. havia uma moralidade insignificante e empoeirada no chão onde caíamos exaustos de nós mesmos e da noite, tão escuros. o cheiro pesado dos corpos trêmulos e úmidos causava uma certa metamorfose e eu passava a ver tudo em blur, doendo inteira de tanta presença de você. quando buscava o consolo pálido das mentiras tênues dormentes sob pedras nas quais nunca pisamos, me inundava com tuas cores e me perdia. menti várias verdades, respirei águas turvas, te preenchi de mim com poesia intuindo uma graça que me faria, satisfeita, te afogar em doçuras insensatas. te mostrei meu corpo mundano que respirava pesado porque o ar era tão cheio de você. esta manhã passeio pelo labirinto obtuso das memórias exaltando a importância do que não se compreende e me mostrando para um você que imaginei assim, com esses teus olhos bíblicos e esses teus braços arredios e agressivos, e te faço ver como sou dragão e mariposa – e me faço água e deixo que caia, gota a gota, na imensidão do mar que se tornou você.